Um cavalo marinho
.....Não gostaria de fazer clichê. Mas ele vinha, o negrinho sem roupa quase, com um cigarro na mão, cara de mau e na boca um dente que faltava. Feridas em tudo, pés descalços e barriga grande, magreza larga. Gingado, com um jeito de andar de quem conhece a vida, já amou, já bateu, sabe sorrir, já foi morto, não parava. Não me assustei, ele vinha – vento na cara, cabelo duro, olhos negros fundos. O vento é quem me botava um frio na barriga, o almoço raso, esta tremedeira das mãos; eu quieto. Vinha firme, fazendo que não, e mancava, não iria sorrir, as mãos não sacudiam, o corpo não precisava de equilíbrio, nem possuía; eu dançava os pés. Era com a idade no corpo, a dúvida escondida, bochechas lisas, testa cava e nariz de macaco, com maneira desses joões-ninguém, pelo chão de pedrinhas. Ia encostar sem turno, atrasado, perverso no vir; e eu já sem cor. Não, ele vinha pontual, metódico, me olhando e fazendo cálculos, sujo, com insetos pequenos voando em volta, fedendo mas eu nem sentia. Vinha: uva: champanhe. Parecia que estava sem arma, mas alma não tinha. Eu checava os bolsos, de cabeça, lembrando o quanto de dinheiro, esquecendo de manter a pose, ele não queria nem saber, continuava. Não queria correr, nem ele que eu corresse, nem ele apressar o momento, simplesmente e sossegado vinha. Os segundos são sempre segundos, e eu consegui criar calma, ânsia, medo, solidez nesse intervalo de um mijo. Eu me contive, mas me caguei. Pau, pedra, faca: eu era mau de briga, eu ia apanhar até morrer, até hoje, sou um corvade. Continuo a mesma massa gorda em carne podre por dentro e por fora que reclama do preço no açougue, o mesmo mesquinho que sabe chorar e se derreter com filmes e fotografias, que dá esmolas, que não escova os dentes, que não bate nem nos filhos que não teve, que aumenta as estórias. Ele andava sem pensar, mas com carinho por si, não era um robô, não era feio, não era bonito, por pouco não era, mas estava. Perto. Estava longe de mim, abaixo de mim, parasita de mim, vinha até mim depois de ter saído de mim; como funcionam as coisas!, e esmola, doação, caridade, agrado, presente, doce, carinho, beijo é tudo engodo, invenção do homem, mentira. Cheirava mal como eu pensava, agora que estava mais perto eu conseguia sentir, porém eu já tinha abandonado meu corpo, minha vontade, até o medo, se o tive. Virei o que era pela primeira vez quando ele chegou – eu não experimentei sensação alguma.
.......- Tu é meu pai, mesmo branco. Tu é meu irmão, mesmo gente. Tira esse cabelo, essa cor, essa roupa. Isto é um orfanato e aqui só entra órfão, não mocinhos. Se tu quer um beijo eu te dou, se tu quer um abraço eu te dou, negro de merda. Tu é branco, puto, negro de merda. Agora sai.
Saí.
.......- Tu é meu pai, mesmo branco. Tu é meu irmão, mesmo gente. Tira esse cabelo, essa cor, essa roupa. Isto é um orfanato e aqui só entra órfão, não mocinhos. Se tu quer um beijo eu te dou, se tu quer um abraço eu te dou, negro de merda. Tu é branco, puto, negro de merda. Agora sai.
Saí.
1 Comments:
pô, cara, brigado. Que bom que gostou do meu blogue.
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