A hepatite de toda criança
.......LEMBRO com gosto - o gosto que sentia à luz amarelada - de quando o pai morava comigo e chegava em casa à noite dizendo que vinha do trabalho cansado e por isso queria janta, queria carinho. Minha mãe sempre amarga, eu não sabia, sofria as dores de supostas traições; nunca foi uma boa cozinheira porém sempre fez a mesa - arroz, feijão e carne sempre havia. Com que dinheiro eu não sei, mas tinha e ela botava lá na mesa sem dar um pio, reprovando meu pai, muito braba. Ele comia e ela ia deitar.
.......A ira da mãe vinha, agora sei, das estórias que o pai contava a justificar os seus horários nunca fixos, eram viagens a trabalho, reuniões com os candidatos, plenárias, eleições internas do partido. Quem não é da política não pode namorar político, ela me dizia. No fundo ela sempre sabia a verdade, e sabe até hoje. Todo mundo trai a mãe. A mãe tem uma visão aguçada de tudo, um jeito de entender as coisas e ligar os fatos que me impressiona, uma esperteza quieta e talvez por isso o pai nunca tenha tido sossego com ela. A vida em casa era atribulada pelos dois que se consentiam mas não se precisavam - ela sabia de tudo, ele sabia que ela sabia, ela brigava com ele e ele mentia. Mas não podiam terminar porque tinham um filho.
.......Nessas vezes em que ele chegava tarde e um pouco bêbado, ela ia deitar resingada e não esperava por ele. A maneira horrível e linda de se vingar que ele tinha era então surgir com uma garrafa de vinho muito bom, me acordar fazendo carinho, beijando com a barba espetante e me golfando um bafo etílico. Eu acordava ressabiado, sem saber se era dia ou noite, via o pai bêbado e compreendia a cena que já era típica e então podia dar um abraço nele e um beijo na boca. No nosso apartameno quitinete, toda vez que se está num cômodo da casa se está em todos e em nenhum ao mesmo tempo, a gente dizia isso e ria pra fingir felicidade da pequenez do lugar, essa era a vingança do pai, a cortina que dividia o larzinho não escondia a luz amarela e na parte em que a mãe dormia ia bater também. Ela que sempre teve o sono levinho acordava e ouvia os carinhos do pai em mim, os beijos e as risadinhas nossas, imagino que devesse chorar. Ela que nunca soube ser carinhosa, nem ficar bêbada, nem dizer eu te amo.
.......Num último requinte de crueldade e sentimento, o pai ligava o rádio e punha os elepês do Belchior a rodar, todos que tinha. Aí é que deveria ser a morte pra mãe, que nunca gostou da voz fanha do cearense. Ela que nunca me cantou uma música, nem me acordou com um beijo, nem me espetou com a barba. Do nosso canto escutávamos os discos embriagados, o pai tanto do vinho quando do momento, e eu de sono. Bem no teto havia um quebra-luzes de madeira que repartia em mil quadradinhos a luz hepática do nosso cantinho, a mesma luz que até hoje, onde eu veja, me transporta para os braços do pai e me faz como sentir o seu cheiro de vinho, sua voz embargada, e precisar das músicas de Belchior como trilha. Teu infinito sou eu, cantávamos os três, de certo, sem saber.
.......O pai provavelmente pensando numa de sua gurias, querendo beijos delas; a mãe remoendo a ausência do pai, querendo beijos dele; eu que, amando o pai, desejava beijar a boca da mãe.
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