Não há explicação para algumas coisas. Uns sentimentos, assim. Ou há. A doa Berenice é minha cliente da biblioteca, ela é velhinha e tem um rosto cansado, de quem trabalhou bastante – eu acho que ela veio da roça, mas não tenho coragem de perguntar. Ela não tem sotaque, pensando bem... O pessoal do campo mesmo depois de meio século ainda mantém o acento forte da terra, podendo viver cem anos, e apenas dez dos quais vividos na lavoura. Mas ela é enfeitiçante. A dona Berenice, como eu dizia, vem pouco aqui ( umas duas vezes por mês) mas eu não esqueço ela desde o primeiro dia que a vi. Tem uma voz calma, muito calma, assim, que só podem aqueles que nunca gritaram, ela tem também um rostinho de quem nunca ficou bravo na vida, e um cabelinho ralo de quem jamais os viu em pé. Ela treme os lábios pra falar e quando fala parece que nada no mundo vale a pena além de sua voz. Ela é tremiliqueira, acho que pela idade, mas me trouxe um bombom no dia do amigo e disse “eu te acho querido”. Não posso transmitir, mas ouvir uma expressão doce, de uma voz doce, de uma pessoa doce, dirigida especialmente a mim é de uma satisfação e prazer inomináveis. Ela veio agora e entregou dois livros com quatro dias de atraso, é impossível cobrar multa dela, a minha chefe ta querendo me demitir e isso provavelmente vai ser um argumento que ela vai usar hoje no final da tarde quando descer e me xingar. Sim, porque ela tem acesso à estatística de atraso e vai ver que lançou-se multa e não foi cobrada; talvez ela pense que eu peguei o dinheiro da multa, eu tou desconfiado que ela ta desconfiada disso. Mas sabe que de verdade não importa, e preciso salientar que é bem provável que ela me mande embora hoje por causa disso. Não importa! Talvez eu argumente que eu não poderia cobrar multa de uma pessoa assim, como dona Berenice, e diga que ela me faz bem, que me acalma, me transmite paz, me deixa sentir seguro. Eu tenho que dizer que ela não é uma pessoa simpática, comunicativa, a Dona Berenice, ela não se esforça pra agradar, ela não é treinada. Ela é assim, ela nasceu sorrindo, possivelmente, ela é daquelas que dá vontade de apertar a bochecha, mas talvez minha chefe resolva me demitir com mais vontade se eu lhe falar isso. Acho que a dona Berenice é virgem. Acho que no fundo no fundo, embaixo de toda minha tese sobre relações, de toda minha descrença no amor, de todo meu ceticismo quanto aos outros, de toda minha decepção, de todo meu pseudo-esquerdismo, de toda ladainha que falo quando tenho que impressionar alguém, eu acredito no amor sim, e seja um conservador, não sei se é a suposta virgindade que lhe confere isso, se é o campo que a fez assim, não sei que dia ensolarado recebeu a dona Berenice. Ela me faz acreditar que sou bom, ela me faz ter vontade de protegê-la, ela me faz ter vontade de abrir a porta pra ela, ela me faz ter vontade de receber e dar um beijo de boa noite, ela me faz ter vontade de ajoelhar e rezar com ela por nossos irmãos, ela me faz ter vontade de aprender a cozinhar um seu prato preferido, ela me faz ter vontade de escrever uma carta, ela me faz ter vontade de escrever, ela me faz ter vontade de apertar sua bochecha, ela me faz ter vontade de gritar que ela existe, ela me faz ter vontade de parar de roubar, ela me faz ter vontade de me guardar para pessoa amada, ela me faz ter vontade de casar e ter filhos, ela me faz ter vontade de ser vegetariano, ela me faz ter vontade de nunca mais gritar com ninguém, ela me faz ter vontade de ir morar num campo e criar galinhas, patinhos e porquinhos, ela me faz ter vontade de usar o diminutivo, ela me faz ter vontade de escovar os dentes, ela me faz ter vontade de não usar roupas escuras, ela me faz ter vontade de tirar meus colares, ela me faz ter vontade de voar, ela me faz ter vontade de não me preocupar com a escrita (que tudo que tá saindo aqui é factual mas não literário). Não juro por deus mas, eu juro por mim, ela é uma pessoa divina.
1 Comments:
qual a diferençã entre o factual e o literário? hein, hein?
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