Assombração
Deitada no chão duro da casa abandonada, mal-assombrada, da qual todo mundo conta estórias. Que estória vou contar? Essa? De como seu Ari, o padeiro, está deitado sobre mim com as calças arriadas, resfolegando e eu com as pernas arreganhadas, o vestido estampadinho levantado? E o Jorjão? O que eu vou contar pra ele? Hoje mesmo me despedi dele no portão de casa, Tchau, querido, ele se indo pra entregar a carga, mais de dez mil quilômetros de viagem pelas estradas sertão adentro. Ah, Jorjão, quando você chega vai logo tirando a minha roupa e dizendo Vem cá minha mulherzinha gostosa, vem tirar o atraso do teu homem. E eu sempre duvidando, afinal, quinze dias fora de casa, como é que o Jorjão não pegava mulher? Deixa eu ver, Jorjão, mostra se está crescidinho. Ah, Elvirinha sapeca, vou te dar ele todinho, vem cá, vem. Agora quem está me dando o todinho é o seu Ari, o desta estória mal-assombrada que eu não vou poder contar pra ninguém. Como vou explicar? Dizer que com o Jorjão só é bom nos três primeiros dias, logo que ele chega de viagem? E que depois sexo toda noite me cansa, fogão de dia, cama de noite, o Jorjão cheirando a cerveja, suor e alho, puro dever. Pensava que casamento era assim não. Lá em Quixeramobim, quando eu era noiva, o Jorjão era um doce. Presente pra cá, presente pra lá. Bombons, flores, uma lembrancinha de viagem, o corte de tecido estampadinho. Agora, presente mesmo, só o todinho nos três primeiros dias. Depois, Mulher, hoje quero comer jabá com gerimum! Mulher, vá comprar cerveja na venda do seu Tobias! Dona Elvira, vem cá vem cumprir teu dever de esposa! Ah, Jorjão, hoje estou cansada. Que é isso, mulher? Teu homem está aqui, tem cansaço não. Vamos logo, vai te deitando aí na cama. Me deitava, claro, não ia discutir com o Jorjão que nessas horas era quase um carrasco. Deita, eu deito; abre as pernas, eu abro. Carrasco! Pra deitar com seu Ari, o padeiro, foi diferente. Mas a culpa é da dona Cleonice, a vizinha. Eu me despedia do Jorjão, hoje de manhã, e ela, da sua janela, puxou conversa. Vai, Elvira, aproveita a folga que o Jorjão te dá. Que é isso, dona Cleonice? Quando casei fiz juramento de fidelidade. Eu também, bobinha, mas juramento não dá arrepio em ninguém. É, agora eu concordo com ela, arrepio como este que o seu Ari provoca, juramento não dá mesmo. Mas eu continuei, Credo cruz, dona Cleonice, jurei, está jurado. E se Deus vê o que eu ando fazendo? E ela, Vê nada, minha filha, nem Deus, nem o Jorjão, nem eu que sou tua vizinha. Aproveite a mocidade e repare no seu Ari, da padaria, que anda de olho em você. A culpa foi de dona Cleonice ao dizer que Deus não via, mas eu vejo por cima do ombro do seu Ari uma mancha estranha ali no alto da parede em frente. Juro que tem um rosto naquela mancha. Será que é Deus? Será que ele vai contar para o padre Joaquim? E como eu vou comungar na missa de domingo? Minha filha, conte seus pecados. Tem pecado não, padre Joaquim. E os pensamentos, minha filha? Ai Jesus! o que eu digo para o padre Joaquim se eu não posso contar sobre o todinho do seu Ari? Ah, padre, eu vi na revista o retrato de uma artista de cinema e tive vontade de ser igual a ela. Inveja, minha filha, pecado capital, reze dez ave-marias. Eu rezo, ave-maria, padre-nosso, ave-maria... Rezo até para espantar o fantasma que deve estar aí nessa mancha. Mas qual deles, o fantasma do marido, da mulher ou do amante? Ah, seu Ari, mexe assim, mexe como a massa do pão. Se não tivesse ido comprar o pãozinho que sai às seis horas da tarde nada disso tinha acontecido. Depois do que a dona Cleonice contou, Repare no seu Ari da padaria que anda de olho em você, com que cara eu ia aparecer pra comprar pão? Com batom, os cabelos presos em um coque, por que o Jorjão vive dizendo que a minha nuca é muito sensual, e o vestido novo, estampadinho, feito com o corte que o Jorjão trouxe de Fortaleza. Seu Ari estava lá, sovando a massa. Fiquei ali estatelada, reparando no jeito que ele amassava a mistura, fazendo uma bola, jogando contra a mesa, as mãos agarrando a massa com força. Senti um arrepio na espinha, como se meus quadris fossem aquela bola de farinha de trigo. Boa tarde, dona Elvira, já já sai um pão quentinho. O pão demorou pra assar, mas não desisti. Acho que estava com desejo de comer pão, culpa da dona Cleonice. Fiquei por ali vendo os bolos de aniversário expostos na vitrine, o bolo do meu casamento tinha três andares e lá no cocoruto, o casalzinho de noivos rodeado por pombinhos brancos. Jurava que casamento era assim, tudo branquinho, uma paz, um todo-o-dia enfeitado com rosinhas de glacê e por dentro aquele recheio doce, de lamber os dedos. Mas agora eu sei que o bolo só dura os três primeiros dias. Os clientes do seu Ari saíram e eu fiquei ali, parada, olhando bolo, segurando o saco com os pães, dez, pra que tanto, se o Jorjão está viajando? Está escuro, dona Elvira, eu lhe acompanho até sua casa. Seu Ari desceu as portas de ferro, as moscas voejando por cima dos bolos confeitados, trancadas na vitrine da padaria, como eu estou trancada nesta casa mal-assombrada, seu Ari e a mancha na parede me acompanhando. A mancha que não é mancha de mofo ou de pintura desbotada, é a cara do Jorjão. Deus não me vê mas o Jorjão, sim. Ah, seu Ari, ah, seu Ari, o pãozinho já está quase no ponto. O suor de seu Ari pinga no meu pescoço como deve pingar na massa que ele prepara. Mas quando saímos da padaria ele estava cheiroso, sem sinal de cerveja, suor e alho, sem um grão sequer de farinha de trigo no bigode, me acompanhando pela rua, contando estórias da padaria, dos clientes, até que passamos em frente à casa mal assombrada. Ele parou no portão. Dona Elvira, a senhora conhece a estória desta casa? Não, seu Ari. Dona Cleonice começou a contar, mas eu fiquei com medo, esses assuntos me arrepiam toda. Ah, então é melhor eu me calar. Não, seu Ari, conte. Estou aqui há pouco tempo, seis meses, desde o casamento com o Jorjão, quero conhecer as histórias de Sobral. Felizardo, o Jorjão, ele disse e eu entendi o conselho da dona Cleonice. Sabe, dona Elvira, o caso foi o seguinte, o marido matou a mulher, o amante e a si mesmo. Caso de amor, de ciúmes, mas também de generosidade. O amante maltratava muito a mulher, batia, um carrasco. O marido, generoso, quis salvá-la, mesmo que ela não o amasse mais. Atirou no amante, ela se jogou na frente, quis morrer junto, generosa por sua vez, e assim se foram os três. Que estória, seu Ari... Mas como é possível mulher gostar de homem que espanca? Ah, dona Elvira, são os mistérios da alma humana. Dizem que lá no Rio de Janeiro vive um filósofo que estudou o assunto e concluiu que mulher gosta mesmo de apanhar, com todo o respeito, dona Elvira. Fiquei pensando que a sova só valia à pena se fosse pra ganhar uns beijinhos depois, o marido ou o amante, sei lá, qualquer um, todo arrependido, desculpe, mulherzinha, e beijando beijando os machucados. Será que estava faltando isso no meu casamento com o Jorjão? A voz do seu Ari me trouxe de volta. É, dizem que os fantasmas dos três andam pela casa, aparecem de quando em quando por trás dos vidros das janelas, alguns ouvem os gemidos, os gritos da mulher. O fato é que mais ninguém voltou a morar aqui. Senti um arrepio quando ouvi a estória dessa mulher e me lembrei de dona Cleonice - juramento não dá arrepio em ninguém - e me deu vontade de entrar na casa, arrepiar, arrepiar, quem sabe ver os fantasmas dos três. Saber daquela mulher, de seu fantasma, porque o amante era melhor do que o marido, tão melhor que até valia morrer. Acabei no chão, arrepiada, arrepiada e o fantasma do Jorjão na mancha da parede, o fantasma do Jorjão saindo de dentro da mancha, atirando no seu Ari, a bala entrando pelas suas costas e chegando até o fundo do meu coração. Será que o Jorjão iria se matar também? Ah, seu Ari... ah, Jorjão... ah...